Contos Completos de Graça Pina de Morais | Revista E (Expresso) | Recensão de Pedro Mexia ★★★★

«Histórias que dispensam o enredo em favor de uma exploração de estados de alma, os contos de Graça Pina de Morais parecem apenas habitar num mundo interior.»

«Até certo ponto, a ficção de Graça Pina de Morais (1929-1992) é "ilustrativa" de uma época, as décadas de 1950-60, com aquelas histórias de angústias burguesas, malaise existencial, tédio e incomunicabilidade. Histórias "à Antonioni", cineasta aliás citado num destes “Contos Completos”. Fernando Pinto do Amaral, no prefácio ao livro, que reúne duas colectâneas e alguns dispersos, aproxima a escritora de Maria Judite de Carvalho ou de Fernanda Botelho, autoras do mesmo período que têm vindo a ser reeditadas e redescobertas, ou de Isabel da Nóbrega e Natália Nunes. E é verdade que há um certo tom que as aproxima, um sarcasmo e um descontentamento, uma crueza. Mas se as afinidades com, digamos, Maria Judite de Carvalho, parecem inúmeras (os traumas, a miséria conjugal, o desamor, a insignificância, a frustração), podemos assinalar importantes diferenças estilísticas, narrativas, diferenças de voz ou de ênfase: em vez de acontecimentos e desenlaces fortes, e de uma escrita seca e aguda, os contos de Graça Pina de Morais dispensam o enredo em favor de uma exploração detalhada de estados de alma, têm personagens densas mas pouco diferenciadas, usam um registo neutro entrecortado por delírios patológicos.»

«Logo no primeiro conto, de 1953, é-nos apresentada uma figura representativa, uma professora de liceu de 40 anos que sente que não viverá muito mais, porque levou uma vida “totalmente traída” e porque está condenada a ensinar livros românticos a alunas que não os compreendem: “Parece que o amor é o único fim da vida da maioria das mulheres, a única coisa notável que têm para contar quando são velhas”, lamenta a professora, e percebemos que é um lamento por si mesma. Esta ideia de que no amor se joga tudo, especialmente para as mulheres, mantém-se inalterada até ao último conto deste volume, ‘A Mulher do Chapéu de Palha’ (escrito em 1986, publicado em 2000), e atravessa os textos das colectâneas “O Pobre de Santiago” (1955) e “Na Luz do Fim” (1961). Envelhecidas ou esgotadas, as personagens entregam-se a amores destrutivos e raivosos, masoquistas, a equívocos por conveniência, fatalidades de classe, fogos-fátuos, neuroses. É gente decorativa ou pretensiosa, maridos enfastiados, mulheres presunçosas, entretidos com a “conversa inteligente” e a agressividade civilizada. Nem a companhia nem a solidão satisfazem estas personagens, que vivem ensimesmadas como se o mundo equivalesse à leitura desatenta das manchetes dos jornais ("cataclismos, governos, desastres, políticas"), como se nada as surpreendesse porque conhecem tudo e não vibram com coisa nenhuma. Não é por acaso que encontramos vários médicos nestas histórias (a própria autora era médica); é porque aos médicos nada do humano lhes é estranho, e porque adquiriram uma carapaça férrea ou uma empatia tranquila: "Compreendia-os a todos [os doentes]... os generosos, os iluminados, os santos, os ladrões, os criminosos, os tarados sexuais, os covardes, os corajosos e até os nulos, os que nem sequer eram — compreendia-os e igualava-os."»

«O catálogo das peripécias, com ligeiras variações, inclui reencontros com amores antigos (“infelizes na adolescência, mas orgulhosos da própria infelicidade”), ternuras escabrosas, desprezos familiares, confissões desoladas, loucuras razoáveis, um pathos que não evita o patético, um “arrebatamento pelo vazio”. Mais do que histórias, são situações, estáticas e quase sem desenvolvimento, solilóquios ou monólogos interiores, conjecturas e colapsos. É evidente que Graça Pina de Morais tinha uma grande capacidade (a que Pinto do Amaral chama um “comprimento de onda”) de detectar pequenos sinais de fractura na sociabilidade e na consciência das personagens, tanto na burguesia lisboeta como na província: “Saber os motivos pelos quais uma pessoa fala ou se cala, o que pensa, o que quer, o que exprimem os seus gestos, longe de aumentar a intimidade, levanta entre duas pessoas um muro, uma distância, como se se tratasse de dois inimigos cujos recursos fossem integralmente conhecidos.” E, no entanto, essa precisão cirúrgica não é o fundamental nestes contos, que nem sempre têm um desfecho nítido (mas quando têm, ficam-nos na memória, como a desgraçada que gasta numas voltinhas de carrossel todo o dinheiro de um roubo); o que predomina aqui é um vago misticismo agnóstico, uma rêverie que deixa as personagens à deriva, interrogando-se sobre o “carácter ocasional” da verdade, sentindo-se orgulhosas ou niilistas, censurando umas às outras a mania de não se contentarem com o mundo interior, aceitando as “leis antigas” (o envelhecimento, a incompreensão, o isolamento), rejeitando consolações modernas como “refazer a vida” (“nunca se refaz nada, vai-se perdendo sempre à medida que os anos passam”), experimentando todas as sensações disfóricas (“a incomodidade, o tédio, a solidão, o amor sempre frustrado, o desentendimento”), querendo alguma coisa além do amor e seus simulacros mesmo sem saber bem o quê. E ainda que o mundo interior não resgate as personagens, parece ser o único mundo que existe: “‘A realização limita a ideia’ — lembrava-se, vagamente, duma longínqua aula de Psicologia. O que vale mais, um lindo cofre de madeira, esculpido, trabalhado e pronto, ou a ideia de um cofre dentro do espírito dum artífice? A ideia.”

Esta última citação é do conto ‘A Fé’ (1966). Trata-se, ainda e sempre, da fé no amor, da paixão no sentido etimológico de ‘sofrimento’. Glória, mulher tresloucada, pouco gloriosa, passou por tragédias e rejeições infames, e quer fugir disso, ou sabe que fugir é impossível, ou tem nostalgia de um amor que seja, como ela diz, uma aura epiléptica, intensa mesmo se penosa. E o conto termina sem resolução, com a reintegração de Glória na natureza, numa praia do Índico (pasmo, vastidão, sufocação, luz branca “opaca e martirizante”), um amor trans-humano, ou uma anulação do amor, tal como tinha acontecido a outra personagem, Lúcia, num jardim, ou como acontece, de novo à beira-mar, com a mulher do chapéu de palha: “Era, na realidade, uma mulher absolutamente anónima, indistinguível de qualquer outro ser humano no meio duma multidão, mas o seu feio e insólito chapéu de palha tornava-a diferente.”»


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