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A Liberdade é Uma Luta Constante | Ípsilon (Público) | Entrevista de Isabel Lucas a Angela Davis
«“A enorme revolução que ocorreu na tua geração, minha querida irmã, significa o começo do fim da América. Alguns de nós, brancos e negros, sabemos o quão grande foi o preço pago para trazer à existência uma nova consciência, um povo novo, uma nação sem precedentes. Se sabemos isso e não fazemos nada, somos piores do que os assassinos contratados em nosso nome”, disse-lhe James Baldwin, um dos maiores nomes ligados ao movimento dos Direitos Civis, numa carta que lhe enviou para a prisão: An Open Letter to My Sister, Miss Angela Davis.
Filósofa, professora universitária, ex-candidata à vice-presidência dos EUA pelo Partido Comunista nas eleições de 1980 e 1984, Angela Yvone Davis nasceu numa família pobre e negra do Alabama em Janeiro de 1944, numa altura em que o Sul da América vivia sob o domínio — não formal — do Ku Klux Klan. Cresceu a testemunhar notícias de morte e abusos e aos 14 anos ganhou uma bolsa para estudar em Nova Iorque. Aí contactou com a militância comunista e com o socialismo teórico. Estudou Filosofia na Universidade de Frankfurt, com o filósofo marxista Herbert Marcuse, e voltou aos Estados Unidos, à Universidade da Califórnia, em San Diego. Viajou pela Alemanha de Leste, doutorou-se em Filosofia na Humbolt University em Berlim. Antes do julgamento que a tornou famosa, era professora em Los Angeles, mas a universidade expulsou-a devido ao seu envolvimento com grupos radicais de esquerda. Acabou por se desligar dos Panteras Negras, mas ficou no Partido Comunista americano até 1991, uma militância de 25 anos. Viajou por Cuba, pela ex-URSS. Os opositores apontaram-lhe o facto de nunca ter denunciado abusos do regime comunista, o que parecia uma contradição numa activista. Continuou sempre ligada a causas como a luta pela reforma das prisões, o chamado feminismo negro, mas até a palavra “radical” parecia não conter o romantismo do início dos anos 70.
Ao longo das últimas décadas, muitas vezes se perguntou o que seria feito de Angela Davis. O mito permanecia, mas a mulher que lhe dera corpo e voz já não tinha os holofotes apontados sobre si. Continua a ensinar e a escrever. Em 2012 foi tema do documentário Free Angela and All Political Prisoners, de Shola Lynch. Falou na Marcha das Mulheres, no dia seguinte à tomada de posse de Donald Trump, em 2017, e o seu nome voltou a ser falado com o ressurgir da luta anti-racista depois do assassínio de George Floyd. “Este momento reserva possibilidades de mudança que nunca experimentámos.” É autora de dez livros de ensaios e da autobiografia Angela Davis, an Autobiography (1974). Um desses livros tem agora edição em Portugal, 50 anos depois da prisão que a transformou num ícone com direito a fotografia estampada em t-shirts de uma marca de luxo. O livro chama-se Liberdade é Uma Luta Constante, um volume com entrevistas, ensaios, discursos centrados na violência de Estado e na opressão em vários lugares do mundo. Foi o motivo para uma conversa via Skype depois da pandemia ter inviabilizado o encontro em São Francisco, onde vive.
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O subtítulo do livro é Ferguson, Palestina e as Bases de Um Movimento. Ferguson é a cidade onde um jovem negro, Michael Brown, foi assassinado pela polícia em 2014, o que esteve na origem de dias de motins. O que é que esses dois territórios, um nos EUA, outro no médio Oriente, têm em comum para os juntar neste título?
Ambos geraram uma onda de solidariedade global contra abusos. Foi durante esse período que apareceu esta fase de solidariedade com os movimentos como o Black Lives Matter, quando as pessoas neste país se tornaram mais envolvidas numa luta, e que gerou, também nos EUA, uma maior solidariedade pelos que resistiam à ocupação na Palestina. Olhando para trás, podemos ver que estava a começar a emergir talvez desde outro assassínio, o de Trayvon Martin, em 2012 [em Stanford, Florida, o guarda-nocturno de um condomínio, George Zimmerman, alvejou um afro-americano de 17 anos, confundindo-o com um assaltante. O jovem morreu e seguiram-se manifestações por todo o país, considerando o acto de Zimmerman como racista]. Outra coisa muito importante nesse momento foi o facto de o movimento Black Lives Matter emergir, enfatizando uma perspectiva feminista, com muitas mulheres a estabelecerem-se como líderes. Todo este movimento tem de ser visto como um todo.
Também foi nesse período que Donald Trump foi eleito. Como enquadra isso à luz desse movimento?
Se queremos entender a relação da eleição de Trump, foi uma reacção ao desenvolvimento deste activismo. Em 2008 muitos se referiram à eleição de Barack Obama como o fim do racismo, mas de facto a presidência de Obama serviu de contexto para o desenvolvimento de uma consciência mais profunda de problemas sociais. Eles tornaram-se, por isso, mais visíveis. Diria que a eleição de Trump foi uma reacção e tentativa de fazer recuar esta nova vaga de activismo jovem, de ideias progressistas, como o Black Lives Matter e, mais recentemente, o MeeToo. Os dois movimentos nascem desse activismo que é uma espécie de continuum, reflexo de uma organização a longo prazo que congrega não só os acontecimentos dos últimos anos, décadas, talvez mesmo da última metade do século XX. Os antecedentes de todas estas questões têm uma génese comum: o capitalismo global. É o desenrolar disto tudo que estamos a testemunhar hoje.
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Uma discussão sobre capitalismo global irá permitir que reconheçamos que o caminho em que continuamos irá perpetuar a escravatura e o colonialismo. E começamos a ver como todas estas questões e estas lutas não podem ser dissociadas.
No início da conversa referiu estes movimentos como parte de um movimento maior, o de uma solidariedade global. Tem escrito sobre o tema, ele aparece neste livro. Até que ponto essa solidariedade global se está a manifestar, e até que ponto este momento pode ou não ser exemplar para activar a solidariedade numa altura em que o mundo parece cada vez mais polarizado?
Pôr o foco na solidariedade global, ou internacional: é muito urgente, ainda mais agora, que estamos a viver uma pandemia. No passado, houve algumas formações que geraram e nasceram dessa solidariedade, umas mais ideológicas do que outras, como as dos partidos comunistas, os movimentos ambientalistas, etc.. Quando eu estava presa, foi criado um enorme movimento de solidariedade, precisamente porque existiam essas formações políticas que insistiam nas ligações internacionais. Agora temos a capacidade tecnológica para comunicar, para desenvolver essas ferramentas e temos os modos de gerar essa solidariedade. Mas estamos sobretudo a usá-la com outros objectivos. Nos Estados Unidos, estamos muito mais alerta para questões de criação de lucro e deveríamos estar muito mais atentos à luta contra o racismo e o sistema prisional. Esse é um desafio para a actual geração de activistas.
Quem deve ter em conta o conceito de “interseccionalidade”? Nos seus textos e palestras tem apresentado a interseccionalidade como essencial no combate ao racismo, à violência, à supremacia branca, às desigualdades económica e social. É talvez o conceito mais referido neste livro e está no seu pensamento desde há anos. Os últimos anos contribuíram para reformular a aplicação dessa ideia?
Como muitas outras mulheres negras e como muitas pessoas que sempre se preocuparam com o racismo e com a opressão de género, muito antes do termo interseccionalidade estar em voga, eu sentia que ao falar destas questões elas não podiam surgir desligadas; havia uma inter-relação de temas que deveriam ser considerados em simultâneo. Quando escrevi Women, Race, & Class [1981] pensei na longa história que incluía exploração económica, pobreza, segregação, racismo. Mas também na opressão das mulheres. Muitas mulheres negras debruçaram-se sobre questões de género. Como eu. Chamaram-lhe feminismo negro por ter a consciência de que género, raça e classe não são dissociáveis. Tem sido um modo de tratar questões de género que sempre reconheceu e aceitou a interseccionalidade. É uma afirmação com muitas décadas: perceber como é importante tocar muitos temas e problemas no contexto social. Ora, o racismo não se pode separar da opressão de género. São formas de segregação. Isso não terminou, muitas mais questões entraram na equação. Olhemos para as lutas que têm a ver com outras formas de opressão sexual ou segregação, como a questão transgénero, de pessoas que pertencem a categorias sexuais não conformes ao sistema. O termo interseccionalidade é uma marca, mais do que um conceito académico.»