Comunicado do editor

No início de Março do corrente ano de 2020, publicou o Clube do Autor o romance distópico de George Orwell Mil Novecentos e Oitenta e Quatro. Ora, a Antígona editou este livro em 1990, sendo detentora dos direitos autorais, exclusivamente para Portugal, até 31 de Dezembro de 2020. Curiosamente, quando se consultava há alguns dias o livro no site do Clube do Autor, surgia a seguinte informação: «Clube do Autor 2020. Direitos Reservados.» Esta atitude ultrapassa todos os limites.

Dediquei muitos anos a ler e a reflectir sobre a obra monumental de Orwell, tendo prosseguido com empenho a publicação de outros títulos, alguns deles desconhecidos dos leitores portugueses. E assim entraram no nosso catálogo oito obras (entre as quais destacaria A Quinta dos Animais, Homenagem à Catalunha e O Caminho para Wigan Pier) e uma biografia escrita pelo autor inglês John Newsinger. George Orwell criou uma alegoria para criticar o estalinismo, bem como outros regimes totalitários, criando também uma figura que se tornou uma representação clássica da tirania no mundo contemporâneo, o Grande Irmão (de que a televisão fez uma caricatura miserável destinada ao entretenimento das massas amorfas). O facto de este livro continuar actual — e poderíamos até dizer: cada vez mais actual —, apesar da erosão interna dos regimes estalinistas e da sua derrocada final, revela que a visão política de Orwell está para além do contexto histórico a que certos comentadores tentam reduzi-la, mostrando que a História não segue em linha recta, mas em elipses, quando não desenha até labirintos.

A edição do Clube do Autor contém um prefácio de um omnipresente jornalista da televisão, José Rodrigues dos Santos, e até uma cinta na capa com a sua fotografia. A operação foi obviamente estudada ao milímetro: Rodrigues dos Santos fabrica best-sellers e atrai multidões com a sua rara vocação para servir a sociedade do espectáculo. Na Feira do Livro de Lisboa formam-se filas de leitores, por vezes debaixo de um calor abrasador, para lhe sacarem um autógrafo. Do ponto de vista comercial, é uma montagem perfeita, executada por estes artistas de inteligência limitada mas de uma esperteza saloia atilada. Sem dúvida que os apedeutas do Clube do Autor acertaram em cheio ao escolherem um encantador de nabos para lançarem uma operação de marketing de largo alcance, nunca vista no meio editorial português. 

Vejo, consternado, que o nosso lema  «enquanto existir dinheiro, nunca haverá bastante para todos» não produziu efeitos visíveis. Asger Jorn, no seu livro A Roda da Fortuna (Frenesi, 1996), afirma que «nunca se pode ganhar mais do que aquilo que o outro perde». Ao prefaciar este romance de Orwell, José Rodrigues dos Santos esqueceu-se de que o autor escreveu sempre contra um certo mundo, com vista a uma inversão radical da sociedade mercantilista; é claro que, se essa mudança se tivesse entretanto operado, não haveria palco para estes escribas, pois já estariam a declamar num lugar páramo, não continuando a poluir o mundo com as suas mijadelas e o seu insuportável vomitório. Estarei enganado?

Para finalizar, faço aqui uma declaração de princípios: nunca nos quarenta anos de existência da Antígona utilizámos os aparelhos repressivos do Estado contra os «mortos» do sistema dominante; porém, desta vez, ante o abuso do Clube do Autor, que continuou a vender o livro até à publicação de um artigo de Isabel Coutinho, no jornal Público, no dia 1 de Abril, tendo somente nesta data enviado um e-mail a vários livreiros suspendendo a venda de exemplares, viu-se a Antígona obrigada a recorrer à lei, por meio de uma providência cautelar. Como dizia Jacques Mesrine, autor por nós publicado, «só a violência tem força de lei».

No dia 1 de Janeiro de 2021, quando os textos de George Orwell entrarem no domínio público, cá estaremos todos para testemunhar quem irá prosseguir, com dedicação e seriedade, a divulgação da sua obra — e quem, sem consciência do ridículo, se banqueteará com as aparas mediáticas do seu nome.

«Hic Rhodus, hic salta.»

Luís Oliveira

Editor da Antígona

 


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